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Poapykua - Relíquias Malditas

Publicado em Fevereiro de 2014, este conto explica a origem do oratório de Olavo, objeto sinistro que aparece no conto "Querido Diário", no Surreal.

poapykua


Juliano G. Leal

Poapykua
Relíquias Malditas


Feliz, 2014


Este conto é dedicado a todos aqueles que ficaram curiosos com o destino de certos objetos mencionados no conto “Querido Diário” no livro Surreal. E também aos que ficaram curiosos quanto às origens destes intrigantes objetos, que estavam prestes a serem destruídos...



Poapykua




– Ai meu Deus! Vô corre aqui!


Mirella estava pálida com os olhos arregalados, fitos em uma fotografia estampada na página policial do Correio do Povo.


Seu Donato se aproximou para ver o que tinha assustado tanto a neta e leu o seguinte:


Morte misteriosa intriga os moradores da Cidade Baixa


A reportagem falava sobre a morte bizarra e ainda não explicada de um jovem de 16 anos. A família não entrou em detalhes sobre o ocorrido. A polícia declarou que “com base no que vimos na cena do crime, foi apenas um trágico acidente”, mas que as investigações prosseguiriam.


– É aquele piá que comprou o oratório aqui, né vô?


– Eu avisei que aquele negócio não era boa coisa. Só falta virem aqui fazer perguntas.


– Acho que não. Acho que só a gente vai conectar a morte dele com o oratório. O senhor não acha que deveríamos avisar a família?


– Talvez. Mas depois que a poeira baixar um pouco. Já temos problemas suficientes pra resolver agora que minhas suspeitas se confirmaram.


– Preciso confessar uma coisa e me desculpar com o senhor.


– É mesmo?


– É vô. Até agora eu achava que o senhor tava exagerando. Sabe, meio paranoico e supersticioso demais.


– Minha desconfiança tinha motivo, filhota. Me diz, que tipo de pessoa se desfaz dum monte de objetos antigos e atopetados de prata em troca de um mero sininho de vento? Aquela véia tava era se livrando desses badulaques!


– Eu dei uma pesquisada neles. – Disse Mirella fechando o jornal. – Tinha um livro velho com umas anotações e uns nomes...


– Descobriu algo interessante?


– Sim. As coisas foram feitas por um marquês falido no fim da monarquia. Diz a lenda que ele usou todo o dinheiro que lhe restava para criar a coleção de objetos. Ele pediu que um feiticeiro amaldiçoasse a madeira e a prata usada neles, pois daria de presente àqueles que causaram sua decadência.


– Viu, eu sabia que dali não vinha coisa boa...


– Dizem que o feiticeiro misturou o pó da madeira moída de uma árvore maldita, na cola que o escultor usou. E parte da prata, foi derretida de armas usadas em batalha.


– Bom, falta pouco tempo pra eu destruir aquilo tudo. Aí terminamos com essa história e ninguém mais se machuca.


– Tem um probleminha aí vô.


– Ah, eu sabia! Sempre tem...


– Quantos objetos o senhor pegou com aquela senhora?


– O oratório do piá, a caixinha de música, o realejo, o espelho, o atril, a espada, o broche de camafeu e os braceletes. Oito?


– Falta um então. Aqui no site diz que foram feitos 9 objetos. Falta um anel.


– Deve ter ficado com ela. Pra ter todos os objetos ela deveria ser fã desse marquês.


– Talvez fosse mais do que fã. Aqui diz que ele fez as peças, mas nunca deu aos inimigos. Elas ficaram guardadas com a família pra sempre.


– Então ela era descendente dele. Tu falou da madeira e da prata. Eles não falam nada do ônix aí?


– Não vi nada ainda. Vô, isso deve valer uma fortuna. Tanto pelo valor histórico, quanto pelo valor real. Uma barrinha de prata é quase 600 pila, e como o senhor mesmo falou, tá repleto de prata aí. Os ornamentos devem ter sido feitos à mão. São peças do período imperial, e os enfeites de ônix valorizam muito o conjunto. O senhor já vendeu o oratório. Devia vender o resto.


– Pra mais gente acabar que nem esse guri? Acho que não...


– Então deixa eu olhar melhor as peças. Deixa eu pesquisar mais. E se eu achasse um jeito de quebrar a maldição?


– Pode ser. Mas só até o final da semana. Depois disso, essas coisas vão embora, não me importa o quanto sejam valiosas. Minha vida vale mais que um punhado de prata. Vou ali no Gambrinus pegar uns bolinhos e já volto...


Mirella foi para o escritoriozinho que ficava apertado entre uma parede e uma estante e começou a examinar os objetos com mais atenção.


O broche tinha esculpido nele o rosto de uma mulher muito bela, mas com uma expressão fria e ameaçadora. Usava uma trança muito bem feita pendendo sobre o decote. Mirella podia jurar que a extremidade do cabelo foi esculpida propositalmente para se assemelhar a um ferrão de escorpião.


Também percebeu letras minúsculas gravadas em alguns detalhes de prata, e dentro dos braceletes palavras estranhas:

Poapykua Juka



– Poapíqüa júca? Poapiqüá Jucá? Como será que se diz esse troço?


Jogou no Google. Nenhum resultado encontrado. Virou o site da lenda de cabeça pra baixo atrás de mais detalhes. Nada. Decidiu contatar a pessoa que fez o site. Foi quando se deu conta que a última atualização fora há 4 anos e não havia nenhum “fale conosco”.


Copiou a frase num papel e foi até um antiquário na Marechal Floriano, onde um amigo, Túlio, trabalhava.


– Desculpa Mirella, nunca vi isso em nada. Mas o som parece indígena. Vou ligar pra um amigo meu, o Abel, que é caingangue e ver se ele consegue nos dar uma ideia.


– Onde tu viu isso? – perguntou Abel.


– Uma amiga achou isso entalhado num bracelete.


– Não é boa coisa. Não sou especialista, sei uma ou outra coisa de ouvir os idosos conversando e isso aí deve ser guarani. Se eu não estiver errado esse “juka” tem a ver com morte! O resto eu não sei dizer...


– Valeu cara!


– De nada! Mas na boa, larguem esses troços de mão...


– Tá tri. Até!


– Tchau.


Mirella suspira e diz:


– Morte é?


– Pois é...


– Bom, meu avô deve ter razão. Vou voltar pra loja e largar essa coisa toda. Que faça o que ele quiser. Valeu Túlio!


– Aparece aí mais seguido, tá?


– Tá bom. Tchau.


Mirella começou a subir a Marechal pra voltar pro Mercado Público. Na esquina da Duque de Caxias um homem correndo feito louco esbarrou nela e a empurrou para o meio da rua.


Uma lotação freou com tudo e parou a três dedos de distância dela. Assustada, recortou as ruas do centro pra evitar atravessar nos cruzamentos complicados e chegou em segurança.


Contou para o avô as coisas que descobrira e que estava desanimando em sua pesquisa. Que a maldição não tinha jeito mesmo.


Perto da hora de fechar a loja, um homem muito bem apessoado se aproximou e disse sem nenhum rodeio:


– Vim livrar vocês do problema.


– Que problema? – disse Donato pensando que fosse o eletricista que não tinha vindo desde que ele chamou.


– A coleção do Marquês. – e colocou uma valise sobre o balcão.


– Não está a venda.


– Eu sou imune a essas maldições. Aqui tem R$ 144.000,00, que seria o valor médio do lance caso essa coisas fossem a leilão fechado. Agora me dê as peças.


– Não sei quem o senhor é, e já falei que não estão à venda!


– Pois muito bem. Vai ser do jeito difícil então.


O homem fechou a porta e mostrou discretamente uma arma por baixo da roupa. Mirella pôs as duas mãos na boca de susto e seu Donato desabou na cadeira.


– Tu guria, faz a nota.


Ela fez.


– Agora vai pegar as coisas. E da próxima vez velho, não mente pra uma criança.


– Não foi mentira. A velha comprou no leilão e jogou aqui. Ela sabia da maldição e não nos avisou. O guri morreu antes de eu saber detalhes. Tudo que eu tinha eram pressentimentos. E eu estava certo.


– Coloca tudo em cima do realejo. Me dá a nota.


Ele saiu puxando o realejo até o carro estacionado na rua. Mirella saiu atrás dele. Donato ficou decepcionado por não ter destruído os objetos e chorou debruçado no balcão.


– Moço, desculpe meu avô. Obrigado por nos livrar disso. Posso perguntar seu nome?


Ele entrou no carro e respondeu:


– Thäno. Talvez um dia voltemos a conversar.


– Espera, o que quer dizer a expressão nos braceletes, o senhor sabe?


– Não são braceletes. São algemas! Algemas da morte. Pena que você não aprendeu a usá-las...


– Como assim?


– Adeus!


Mirella voltou para a loja. Não conversaram mais sobre aquilo. Passou muito tempo. O dinheiro foi muito bem vindo. Donato se aposentou e Mirella ficou cuidando sozinha da pequena loja. As relíquias do marquês ficaram no passado.


Até que um dia, um menino de rua entrou na loja e disse:


– Tia, quer comprar esse anel que eu achei num bueiro, pra eu poder comprar comida?


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